segunda-feira, 8 de agosto de 2016

JUDAÍSMO E O ABORTO

Considerada a principal entre as religiões monoteístas, o Judaísmo originário das crenças do povo judeu é estruturado em três pilares principais:

Ø    a Torá;
Ø    boas ações
Ø    adoração.

Por ser uma religião que supervaloriza a moralidade, grande parte de seus preceitos baseia-se na recomendação de costumes e comportamentos “retos’’, com o dever a pratica da justiça, amor e misericórdia, caminhando humildemente nas sendas divinas”.

O Deus apresentado pelo Judaísmo é uma entidade viva, vibrante, transcendente, onipotente e justa. Não é uma religião de conversão; efetivamente respeita a pluralidade religiosa, desde que não venha a ferir os preceitos do judaísmo.

A prática da religião está presente no dia a dia do judeu com especial atenção à sua alimentação, que deve ser livre de substâncias consideradas impuras; para tanto, é adotado um cardápio específico, denominado kosher. O Shabat, ou dia do descanso, também é fielmente seguido do pôr do sol da sexta-feira até o pôr do sol do sábado, celebrado com orações, leituras e liturgias na Sinagoga, o templo judaico.

As escrituras sagradas, leis, profecias e tradições judaicas remontam a aproximadamente 3.500 anos de vida espiritual e estão registradas em duas principais leituras: a Torá, também conhecida como Pentateuco, correspondente aos cinco primeiros livros do Antigo Testamento bíblico, e o Talmud, uma coleção de leis que inclui o Mishná, compilação em hebraico das leis orais, e o Gemará, comentários de rabinos sobre essas leis em aramaico.

No Brasil, a religião surgiu no século XIX, com a imigração de aproximadamente 5,5 milhões de judeus, entre 1870 e 1920. Hoje, o judaísmo é praticado por cerca de 15 milhões de pessoas em todo o mundo.

“O Judaísmo dá importância ao trabalho médico.” Essa foi a primeira observação feita, durante a entrevista, pelo Rabino Chamai Ende, especialista em leis judaicas da sinagoga Beit Chabad do Brasil. Para ele, as doenças e deficiências são fragilidades colocadas na vida do homem por Deus.

Contudo, segundo a visão judaica, o homem pode intervir para sua cura, e ele ressalta que, em uma das leis orais, Deus diz que devemos ouvir os médicos. O Rabino explica que Deus atribuiu ao médico a força de curar, sendo ele o responsável por este dom. O médico tem como obrigação se especializar ao máximo para vencer as doenças e fragilidades humanas, conclui o rabino.

Quanto aos métodos da medicina atual, o Rabino salienta que apenas em três situações, ainda que para evitar risco de morte, os princípios judaicos não abrem mão da religião e vetam; são elas: idolatria, homicídio e relações incestuosas.

Com muita convicção no que diz, o Rabino Chamai Ende cita que dentro das leis judaicas tudo deve ser feito para a construção de uma família, desde que esse filho seja fruto de um casamento realizado sob os preceitos da religião judaica, sendo vetada qualquer forma de ajuda para casais que não se enquadrem nela, seja por médicos judeus ou não judeus.

Perguntado sobre os métodos de inseminação artificial, o Rabino declara que os três tratamentos são aprovados pelos judeus. Porém, ele cita algumas recomendações específicas de cada procedimento. O coito programado é aceito, desde que seja feito dentro das leis da religião, como foi esclarecido no começo do capítulo. Além do apoio da religião, o casal com dificuldade para engravidar encontra todo o apoio dentro da comunidade judaica para a realização de seu sonho.

No caso da inseminação artificial e da fertilização in vitro, o religioso explica que há algumas recomendações que devem ser respeitadas. A maneira como o sêmen é retirado, para ambos os tratamentos não pode ser da forma costumeira. Ele explica que deverá ocorrer uma relação sexual entre o casal e a coleta do sêmen deve ocorrer utilizando-se uma camisinha especial.

Quanto ao procedimento de congelamento de óvulos e embriões, a prática é aceita desde que com acompanhamento de um rabino, assim como nos outros métodos, e com a garantia de que estes não serão utilizados por outra pessoa.

Mesmo quando o rabino cita a obrigação do casal judeu de ter filhos, faz questão de lembrar que são totalmente contra a doação de embriões. O mesmo vale para doação de sêmen e óvulos.

Dentro dos costumes judaicos, todos os procedimentos de uma inseminação assistida precisa do acompanhamento e da supervisão de um rabino em todas as etapas, desde a coleta do sêmen e óvulos até e, principalmente, o processo da fecundação. Hoje existem rabinos especializados nesta área para auxiliar os casais judeus com esse tipo de tratamento.

“Nós consideramos o casamento algo sagrado. Gerar uma criança é um ato físico normal, mas dentro do Judaísmo não pode ser usado em outra pessoa. É como se estivéssemos profanando o embrião que foi feito por esse casal, comparado a uma invasão familiar”, ressalta o Rabino.

Quanto ao aborto, agora, podemos afirmar que o feto é uma criatura à parte e independente da sua mãe? Ou talvez considerar o feto, antes do seu nascimento, como uma espécie de órgão adicional da mãe.

O Talmude ensina que se lhe proporciona uma alma ao embrião no momento da concepção. É claro que, segundo o Talmude, o feto possui individualidade e, por isso, é um ser aparte da mãe, e não pode ser considerado como um outro órgão da mesma forma.

O Talmude refere-se ao embrião durante os primeiros quarenta dias de gestação como mayá beamá, que quer dizer “simplesmente água’. Podemos deduzir que até este momento não se considera o embrião como um ser humano em todo o sentido. Mas tão pouco se implica que deixemos de apreciar que estamos frente a uma vida humana em potência.

O fator determinante é sem dúvida a saúde e o bem estar da mãe. Nos casos em que o feto tem deficiências genéticas, a nossa tradição desaconselha o aborto porque não existe a certeza da falha que se acha que não pode ser corrigida no futuro. E que diferença terá para nós o conceito de vida de um ser que tem deficiências com um que não tem?

Teremos sempre em conta os efeitos negativos que um bebê nestas circunstâncias pode trazer para a mãe, se a mãe afirma e decide que não quer dar à luz um filho com sérias deficiências mentais ou físicas e isso será motivo para o seu desespero, aqui se pode pensar na possibilidade de fazer um aborto, pois a nossa responsabilidade primária tem a ver com a saúde e o bem estar do ser humano integro, que neste caso é a mãe.”

“Reflexões Sobre o Aborto” (1991), Luz – Textos e Depoimentos (Âncora, 2001), uma recolha de escritos de Abraão Assor, rabino da comunidade judaica de Lisboa de 1941 a 1993.

Em termos gerais, tal como escreveu o saudoso rabino Abraão Assor neste texto que transcrevemos, a Halacháh (Lei Judaica) não só permite o aborto, como em algumas circunstâncias exige a interrupção da gravidez. Acima de tudo, norteada pelo princípio da responsabilização individual – um princípio central do judaísmo –, a tradição judaica coloca a decisão na esfera familiar e, por vezes, comunitária.

Historicamente, nos países onde a interrupção voluntária da gravidez se tem assumido como tema político de clivagem – especialmente nos EUA –, as comunidades judaicas têm manifestado uma oposição unânime à restrição do aborto por via legislativa. Os três principais ramos do judaísmo moderno (ortodoxo, conservador e reformado) defendem que a discussão do aborto pertence apenas e exclusivamente às mulheres e famílias afetada, e não deve ser motivo de regulamentação legislativa ou demagogia política.

Mesmo assim, nos últimos anos, surgiram algumas correntes antiaborto no seio de movimentos judaicos ultraortodoxos, influenciados em grande medida pela forma como o tema tem elevado a importância política de movimentos idênticos na direita cristã.

A pressão de alguns partidos religiosos ultraortodoxos em Israel, por exemplo, fez com que as dificuldades econômicas deixassem de constar da lista de razões legalmente reconhecidas para que uma mulher pudesse recorrer ao sistema nacional de saúde para abortar. Ainda assim, em Israel a interrupção voluntária da gravidez continua a ser legal – gratuita ou com custos moderados –, com algumas restrições consideradas “meramente formais” (ver Abortion in Israel: Terms of Termination).

Pela legislação judaica, o feto não é considerado uma pessoa, antes do nascimento. Ele é considerado parte do organismo materno até o momento em que emerge do útero. Nos primeiros quarenta dias de gravidez, o ovo fertilizado é considerado apenas um fluido sem forma.

No Livro Êxodo (Shemot), se há uma briga entre homens e um deles agride uma mulher grávida e esta aborta, o agressor paga apenas ao marido uma quantia para resgatar o bem perdido, mas, se a mãe também morre, ele paga o crime com á vida (Êxodo, 21: 22 - 23) .

Disso deduzem os sábios que o feto não é um ser humano, porque a morte de um ser humano é punida na bíblia com a morte do assassino , pois está escrito que ‘’ quem agride um ser humano e o mata , deve morrer (Ex 21:12) . O feticídio não é , portanto, punido com pena capital, mas isso não exclui ser crime praticá-lo.

Em fontes talmúdicas (Mishnáh – Tratado Ohalot) a vida da mãe tem precedência sobre a do feto. Assim quando o trabalho do parto ameaça a vida materna, é permitido destruir o feto (embriotomia ) para salvar a mãe. O direito à vida do feto é subordinado ao da mãe e o feto pode ser sacrificado para salvar a vida da mãe.            

Maimônides vai além. Ele acha que o feto que ameaça à vida da genitora é um agressor engajado em ameaça, da vida materna, e assim deve ser eliminado. Alguns acham que essa definição faz com que o aborto só possa ser sancionado quando o feto é ameaça à vida quem o concebeu e que, nos outros casos o aborto seria um crime de assassinato.

Ainda a Mishnáh (Tratado Arachin) diz: “se uma mulher grávida é condenada à morte e deve ser executada, não devemos esperar o nascimento da criança; mas se as dores do parto já começaram, devemos esperar até que o parto se realize”.

A Mishnáh, neste tratado, explica que o embrião é parte do corpo materno, não tem identidade própria porque depende do organismo materno para viver. Contudo, logo que ele emerge do útero e começa a respirar, é considerado um ser autônomo (nefesh), e assim não afetado pelo estado da mãe.

Esse conceito do embrião considerado como parte do organismo materno é endossado pelos talmudistas e pelos rabinos da idade média. Uma toseftá (suplemento ou anexo do Talmud, [escritos por uns 150 sábios, estes eruditos viveram entre os séculos XII e XIV em França e Alemanha principalmente] no tratado Nidáh) constata que é permissível matar um feto não nascido. Mas algumas autoridades acham que essa interpretação não deve ser tomada ao pé da letra e outras autoridades mesmo que essas palavras dos Tosafot são erradas.

Indiscutivelmente, nos primeiros quarenta dias de gravidez, ovo fertilizado é considerado como mero fluido sem forma e após esse prazo a formação do feto começa ocorrer. As leis de impureza devem ser observadas pela mulher que aborta após os quarenta dias, e essas leis não são idênticas às que se seguem a uma menstruação, mas sim às que se seguem a um parto.

Pela lei judaica, a permissão de comer terumá (ofertas a Deus) é um privilégio de filhas solteiras, não casadas, de um sacerdote. Esse privilégio é compartilhado por filhas casadas sem filhos e também por aquelas grávidas com menos de quarenta dias de gravidez.

Algumas autoridades acham que essa regra é suficiente para mostrar que o feto antes dos quarenta dias não é um ser com qualquer direito. Após os quarenta dias, o feto adquiriria um caráter de personalidade e, a não ser que ele ameace a vida materna, ele não poderia ser eliminado.

A qualidade de vida que o feto terá após o nascimento não seria uma razão para o aborto. Assim, mesmo que se preveja o nascimento de uma criança com Tay-Sachs, mongolismo ou outra doença, que vai ser uma sobrecarga para os pais e para a criança, pela lei judaica isso não seria razão suficiente para o aborto. Anomalias físicas ou mentais não afetam o direito de viver do individuo.

A autoridade rabínica do século XII, Rabi Iehudáh, o chassid [o pio] , proíbe terminantemente a terminação da vida ou infanticídio de uma criança nascida monstruosa. Estas considerações se estendem, de acordo com muitas autoridades religiosas, ao termino intrafetal da vida.

A gravidez não pode ser interrompida mesmo que a mãe durante a gravidez tenha tido rubéola, ingerido talidomida, ou haja indicação pré-natal de nascimento de criança mongoloide ou com Tay-Sachs (rubéola?). Outras autoridades religiosas adotam ponto de vista oposto e permitem aborto, nas primeiras etapas da gravidez, em consideração aos sofrimentos futuros dos pais para criar a criança anormal.

Em relação ao estupro, muitas autoridades religiosas são contra o aborto, nesses casos.

Um resumo do ponto de vista judeu em relação ao aborto foi feito pelo professor Abraham S. Abraham:

*   O aborto poder ser induzido se há perigo para a vida materna,quando a gravidez ameaça a saúde física ou mental da grávida.O aborto é permitido porque, em tais circunstancias, o feto (que ainda não é uma pessoa formada) é considerado um agressor que tem como finalidade matar a sua mãe e a vida materna tem precedência sobre a do feto.Mas, uma vez emergida a cabeça do feto, durante o parto, a criança não pode ser mais afetada.Ela constitui então uma entidade viável,cuja vida é tão importante como a da mãe, e uma vida não pode ser sacrificada em favor de outra.
*   Se o aborto é sancionado pela Halacháh (lei judaica) ele deve ser realizado de preferência nos primeiros quarenta dias de gravidez.
*  No que se relaciona à possíveis malformações ou doenças como Tay-Sachs, mongolismo ou defeitos congênitos por rubéola, convém consultar uma autoridade rabínica, porque não há ainda critério firmado. Outros acham que não se deve abortar.
*        Um feto anencefálico deve ser abortado.

*    No caso de gravidez múltipla, é possível permitir que alguns fetos sejam sacrificados para que outros possam sobreviver.

Nenhum comentário:

Postar um comentário